Quem somos

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Para os nossos gatos, também eles, donos do espaço que habitamos

Ode ao Gato




Tu e eu temos de permeio
a rebeldia que desassossega,
a matéria compulsiva dos sentidos.
Que ninguém nos dome,
que ninguém tente
reduzir-nos ao silêncio branco da cinza,
pois nós temos fôlegos largos
de vento e de névoa
para de novo nos erguermos
e, sobre o desconsolo dos escombros,
formarmos o salto
que leva à glória ou à morte,
conforme a harmonia dos astros
e a regra elementar do destino.

José Jorge Letria, in "Animália Odes aos Bichos"

terça-feira, 14 de junho de 2011

A Caldeira


Embora em nossa casa já não se fabrique aguardente, o nome “Casa da Caldeira” tem origem nessa actividade que aqui se praticou durante muitos anos. Desse tempo resta a caldeira (o alambique) e os belíssimos tambores de cobre que hoje, além de objectos decorativos, constituem um elo de ligação ao passado e uma homenagem a quem se afadigou durante longas horas, alimentando o fogo e controlando os mecanismos deste engenho.
Eis aqui um pequeno apontamento a propósito da História da Destilação de Bebidas Alcoólicas
O processo de destilação (do Latim 'de-stillare' que significa 'gotejar’) consiste na separação de um líquido através da sua evaporação e condensação. O exemplo mais simples deste processo pode observar-se quando o vapor de uma caldeira se deposita em gotas de água destilada numa superfície fria. A destilação é empregue para separar líquidos de sólidos não voláteis, assim como na separação de licores alcoólicos de matérias fermentadas, na separação de dois ou mais líquidos com diferentes pontos de ebulição, na separação de gasolina, petróleo e óleos lubrificantes extraídos a partir do crude. Outras aplicações industriais incluem a dessalinização da água do mar (extrair a salinidade da água para a tornar potável).
No século IV a.C., Aristóteles sugeriu a possibilidade de se efectuarem destilações, tendo escrito que: "Através da destilação podemos tornar a água do mar potável e o vinho, assim como outros líquidos podem ser submetidos a este mesmo processo”. Com efeito, a destilação é um processo antigo, remontando ao ano 2000 a.C. Considera-se que as primeiras destilações se fizeram na China, Egipto e na Mesopotâmia e tinham, sobretudo, propósitos medicinais, mas também visavam a criação de bálsamos, essências e perfumes. Na Mesopotâmia, por volta do ano 1810 a.C. a perfumaria do rei Zimrilim empregou este método para todos os meses fazer centenas de litros de bálsamos, essências e incensos de cedro, cipreste, gengibre e mirra. As destilações efectuadas visavam a produção de cosméticos, substâncias medicinais e substâncias utilizadas no embalsamamento de mortos e na realização de rituais espirituais. A rainha Cleópatra conhecia a arte da destilação e pensa-se que fez um relatório deste processo, texto esse que se perdeu. No século I, o físico grego Pedanius Dioscurides fez uma menção a este processo após ter observado a condensação na tampa de um recipiente, no qual tinha sido aquecido algum mercúrio.
Os historiadores afirmam que o alambique foi, muito provavelmente, inventado por volta dos anos 200 ou 300 d.C., por Maria, a Judia ou por Zósimo de Panóplia, um alquimista egípcio cuja irmã, Theosebeia, inventou muitos modelos de alambiques e condensadores de refluxo. Outros afirmam que durante os séculos VIII ou IX, os alquimistas árabes planearam utilizar o alambique para obterem essências mais refinadas utilizadas nos perfumes, enquanto que outros alquimistas árabes o utilizaram para tentar converter metal em ouro. "Ambix” é uma palavra grega utilizada para designar um vaso com uma pequena abertura. Este vaso fazia parte do equipamento de destilação. Inicialmente os árabes mudaram a palavra “Ambix” para “Ambic” e chamaram “Al Ambic” ao equipamento de destilação. Mais tarde, na Europa, a palavra foi alterada para “Alambique”.
(Informação recolhida no site de: Destilarias Eau-de-Vie - Iberian Coppers S.A.)

domingo, 5 de junho de 2011

Gozo os campos





Gozo os campos sem reparar para eles.
Perguntas-me por que os gozo.
Porque os gozo, respondo.
Gozar uma flor é estar ao pé dela inconscientemente
E ter uma noção do seu perfume nas nossas idéias mais apagadas.
Quando reparo, não gozo: vejo.
Fecho os olhos, e o meu corpo, que está entre a erva,
Pertence inteiramente ao exterior de quem fecha os olhos
À dureza fresca da terra cheirosa e irregular;
E alguma cousa dos ruídos indistintos das cousas a existir,
E só uma sombra encarnada de luz me carrega levemente nas órbitas,
E só um resto de vida ouve.

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
Heterónimo de Fernando Pessoa

quarta-feira, 1 de junho de 2011

A Sociedade Portuguesa de Naturalogia visitou a Casa da Caldeira


Pamposto

Desta vez, o tradicional encontro de fim-de-semana, organizado pela Sociedade Portuguesa de Naturalogia, decorreu na região das Serra d’ Aire e Candeeiros. Os 19 convivas pernoitaram nas instalações da Casa da Caldeira (Correias – Rio Maior) do nosso amigo e diretor da Agrobio, Dr. Virgílio Pestana, que nos recebeu principescamente. Quer o sábado, quer o domingo, foram preenchidos com visitas a locais históricos, paisagísticos, etnográficos e ecológicos dos concelhos de Alcanena e de Rio Maior, onde vimos e aprendemos coisas deveras interessantes.
No domínio da gastronomia, para além dos acepipes de produção biológica apresentados pelo amigo Virgílio e sua esposa, a minha curiosidade pousou na descrição da Sopa de Pampostos, prato tradicional da freguesia de Arruda de Pisões.
Ora o que são pampostos? Nada mais, nada menos do que ervas campestres que vegetam espontaneamente nos prados húmidos e terrenos encharcados da região. Pois tais ervas são comestíveis, tal como outras plantinhas silvestres que temos abordado. Numa altura em que nos deparamos com mais de um milhão de hectares de terras de cultivo abandonadas, após a entrada de Portugal na União Europeia e enquanto não se volta à agricultura, a meu ver inevitável e desejável, mais não nos resta do que regressar à atividade recolectora dos tempos primitivos. Quiçá, teremos de andar à cata de alimentos naturais para prover a nossa subsistência alimentar e, nesta matéria, os saberes ancestrais do nosso povo revelam-se assaz preciosos.
O pamposto, segundo o livrinho “Nomes Vulgares de Algumas Infestantes e Respetivos Nomes Botânicos” de Fátima Rocha, editado em 1979 pelo Ministério da Agricultura, é também conhecido por margaça-de-inverno ou margaça-fusca. Trata-se de uma composta cujo nome científico é Chamaemelum fuscatum (classificação dada pelo ilustre botânico português, Brotero). Também aparece, para a mesma planta, a designação Anthemis fuscata. É, pois, uma vulgaríssima margaça, cuja espécie medicinal mais conhecida é a Chamaemelum nobile L que, tal como a camomila, possui propriedades tónicas, estimulantes, antiespasmódicas e emenagogas. As folhas podem ser usadas externamente em cataplasma, como analgésico (nevralgias e dores de cabeça).
Estou convencido de que o pamposto tem idênticas propriedades medicinais, dado que possui o mesmo óleo essencial, mencionado nos “Elementos da Flora Aromática” de Aloísio Fernandes Costa (edição de 1975). A maior diferença que se verifica em relação à nobile é que se trata de uma erva com folhas mais suculentas e daí o seu aproveitamento na culinária popular.
Podemos caracterizar o pamposto como herbácea anual, oriunda da região mediterrânica ocidental, de 5 a 30 cm de altura, sem pelos, pouco ramificada e de ramos ascendentes. As folhas, de verde-escuro, são alternas, muito recortadas e com lóbulos lineares. As flores marginais são liguladas. As pétalas são brancas e o disco central é amarelo vivo com inflorescências hermafroditas e tubulosas. As brácteas involucrais apresentam-se ovadas, de cor castanha. Os frutos formam aquénios. Os ingleses chamam-na “dog fennel” que, à letra, significa funcho canino, uma vez que a folhagem, sendo diferente, faz lembrar a do funcho. Por sua vez, os espanhóis apelidam-na de “mazanilla fina”, talvez pela sua vivacidade, já que brota em zonas húmidas com floração durante vários meses.
Com a devida vénia, vou então transcrever o que vem no livro “As Receitas de Rio Maior”, no que à citada erva diz respeito:
Sopa de pampostos com feijão seco e arroz
Ingredientes: pampostos, feijão, cebola, azeite, arroz, sal.
Arranjam-se os pampostos como qualquer outro legume verde, lavam-se e cozem-se em água. Escorrem-se e amassam-se para retirar o excesso de líquido. Passam-se ainda por duas águas para lhe diminuir o amargo. Deve-se ter em atenção a quantidade de pampostos colhidos, uma vez que reduzem em muito com a cozedura. Coze-se o feijão e junta-se-lhe a bolinha de pampostos. Ferve-se tudo com cebola picada, azeite e sal. Quando levantar fervura põem-se uns bagos de arroz a cozer.
E pronto, eis uma receita simples e saudável, adequada aos tempos de penúria que se avizinham. Ou será que estou a exagerar?

Miguel Boieiro